A Morte do Bom Trabalhador

Edvard Munch - Desespero, 1892

O bom trabalhador existe. Ele trabalha oito horas por dia, entrega além do que lhe é solicitado, não se queixa de fazer horas extras. Sua relação com os colegas é boa, não existem queixas a respeito de seu comportamento, nem mesmo nas reuniões que ele não suporta. Os feedbacks individuais são lotados de elogios à sua performance. Seus líderes dizem que ele é diferenciado, que ele tem potencial para crescer, que ele tem todas as características necessárias para se tornar, algum dia, um gestor. Às vezes, são promovidos contra a sua vontade, porque são bons demais para continuar onde estão. Eles podem fazer mais pela empresa, podem entregar mais. Ele é sensacional. Ele é especial. Ao final do dia, ele vem até o meu consultório para conversar.

O bom trabalhador está de saco cheio. Às vezes estressado. Ansioso. Sem saco. Ele não se sente motivado e não se conecta com o produto. Ele se pergunta se, algum dia, as coisas vão mudar. Será que vale a pena continuar onde está?

O bom trabalhador está comprometido com a mudança. Ele quer voltar a ser empolgado, animado, valorizado. O bom trabalhador cuida da sua saúde. Ele sabe que precisa fazer academia, para aliviar aquela dor nas costas ou nos joelhos. Sua alimentação tem que ser balanceada, porque a gastrite castiga se ele só tomar café durante o dia, então ele precisa parar para comer. O bom trabalhador sabe que precisa equilibrar a vida pessoal e a profissional, ele tem que dar conta das duas coisas e não levar problemas para o trabalho. Ele precisa de tempo com os filhos – ou pensar qual é o melhor momento para tê-los e criá-los com qualidade –, com as esposas ou maridos e visitar os próprios pais. Ele tenta.

O bom trabalhador não se conforma que esteja tão infeliz. Ele está em uma empresa maravilhosa. Ele é tão bom no que faz. Todos o elogiam e gostam dele. Ele é tão privilegiado e parece não conseguir se contentar com nada. Nem com o salário acima da média do mercado, nem com o horário flexível, nem com o Gympass, nem com o ambiente descontraído e descolado. Ele vive pelos dias de folga, quando poderá dormir mais. O bom trabalhador conversa com o seu líder, diz que está com dificuldades. Ele descobre que seu líder também está. O líder, que foi promovido por ter perfil de líder, nunca recebeu um treinamento adequado. Como ser líder sem ser carrasco? Se não posso exigir duramente a produção, o que eu faço? A empresa moderninha não ensina como lidar quando um trabalhador está adoecido, estressado ou insatisfeito. Não sendo ensinado um novo modelo de funcionar, aquele modelo antigo prevalece.

O horário é flexível, mas só até um determinado ponto, porque tem reunião todos os dias, às 9 horas da manhã. O bom funcionário pode, sim, sair no meio do expediente para ir ao médico, mas… isso não é direito de qualquer trabalhador? Se o bom trabalhador quiser trabalhar das 19 até às 3 horas da manhã, ele pode? Se ele quiser fazer aulas de karatê todos os dias, às 10 horas da manhã, o horário continuará flexível? Ou a flexibilidade só se aplica caso ele queira trabalhar das 9 às 19 horas (uma hora mais tarde do que o horário comercial normal), porque ele tem que estar de prontidão caso alguém queira falar com ele? Ele é pago pelo horário da prontidão?

O ambiente também é descontraído, mas não tanto. O bom trabalhador tem a mesa de ping-pong à disposição, puffs para descansar e móveis coloridos, mas a sua carga de trabalho – ou o estresse, ansiedade e culpa – não o permite aproveitar. O bom trabalhador é excelente, tem futuro, mas as regras de reenquadramento, reconhecimento e aumento salarial são pouco claras ou impossíveis de serem atingidas. O bom trabalhador bate metas de vendas o tempo inteiro, oferece ganhos sem limites, porém as metas mais do que dobram sem explicação plausível. Promessas são feitas e desfeitas com uma facilidade perturbadora. Quando o reconhecimento exigido, o bom trabalhador deixa de ser bom aos olhos da empresa. Ele é bom, mas nem tanto. Ele é bom, mas devia aprender mais com fulano.

A empresa diz que se importa com o bom funcionário, mas basta ele ter um quadro de ansiedade e, de repente, eles não sabem o que fazer, porque as entregas precisam ser feitas de qualquer maneira. O bom trabalhador não consegue ver que o seu trabalho faz a diferença, que tem impacto social. As empresas conseguem vender seu produto para os investidores e clientes, mas não para ele. O bom trabalhador adoece e morre. Morre para aquela empresa, para aquela função ou para aquele nível de entrega.

Com a quantidade de estudos que existem atualmente, não deveria existir segredo. Um funcionário satisfeito impacta globalmente as empresas. Já conseguimos comprovar que um funcionário satisfeito tem seu foco aumentado, bem como sua concentração e produtividade. Há menos erros em suas finalizações. Os níveis de rotatividade, absenteísmo, acidentes e doenças reduzem consideravelmente. O lucro aumenta. Trabalhadores satisfeitos conseguem mais clientes satisfeitos. Satisfação implica em sensação de justiça processual por parte dos trabalhadores. Várias áreas das Ciências Humanas discutem isso diariamente.

O bom trabalhador não nasce do zero, ele precisa das condições necessárias para se constituir. O bom trabalhador precisa de investimento e isso impacta muito mais do que aquilo que ele pode fazer sozinho. As relações sociais, a disponibilidade de tempo, a formação adequada, a atenção integral ao indivíduo, uma equipe com integrantes condizentes à quantidade de trabalho exigida, a remuneração digna, todos são alguns dos fatores essenciais e que o trabalhador não tem poder de mudar.

A psicoterapia pode ser uma aliada para lidar com esse tipo de experiência. Caso deseje saber como a Terapia Cognitivo-Comportamental pode te auxiliar, fale comigo nesse link ou me mande um e-mail clicando aqui.



Anne Caroline da Silva

Psicóloga CRP 08/35969

anne.css@outlook.com

+55 41 98869-5821



REFERÊNCIAS


Dawal, S. Z., Taha, Z., & Ismail, Z. (2009). Effect of job organization on job satisfaction among shop floor employees in automotive industries in Malaysia. International Journal of Industrial Ergonomics, 39, p. 1-6.


Folger, R., & Konovsky, M. A. (1989). Effects of procedural and distributive justice on reactions to pay raise decisions. The Academy Management Journal, (32), pp. 115-130.


Palaiologos, A., Papazekos, P., & Panayotopoulou, L. (2011). Organizational justice and employee satisfaction in performance appraisal. Journal of European Industrial Training. 35(8), pp. 826-840.


The Economist, 3 de dezembro de 2021. Disponível em <https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,the-economist-aumento-global-de-pedidos-de-demissao-nao-e-atipico,70003925124>.